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CLAUDIA R. SAMPAIO

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a fogueira de Marte

Eu toda endeusada a elevar-me a
outras esferas. Sem pentear o cabelo nem
arranjar a pele, sem vestir roupa lavada
o ar arruinado de meio-dia não me desvia da viagem
e tudo o que é penteado e engomado está disforme
e inaudível.  
Calor, calor, aspirações metafísicas que
trago no queixo. Negrume dilatado que 
atirei ao ar, no meu foguetão não cabem queixas.
Deixarei de ir às compras e jogar computador
também não saberei de vidas nem da imensidão
das chuvas ou tremores de terra.
Tenho a pandeireta dos ranchos folclóricos para
não adormecer e um assobio de criança, mas
esse não sei porquê.  
Porra de Marte que fica tão longe
monto-me em cima de um pardal que
não pode comigo
mas também não posso com ele. Somos sozinhos
e pequenos, pardalito pardalito.
Somos casados com a gravidez da apatia,
das viagens nocturnas com bêbados e perdedores. 
Dizes-me ao ouvido que é difícil comer,
bem o sei. Passo fome todos os dias porque tenho
o estômago ligado à Terra e a Terra ligada ao fígado
num eterno retorno que me atira as ânsias com
toda a força.
A força também é subjectiva, não há nada que não
me traga suspeitas. Mas agora parece-me imensa. 
Cão macho a urinar à minha porta
não sei do que falas mas levo-te também.
A consagração dos bichos, sempre!
Ter só duas pernas é limitador quando
se vomita o mundo. Ter só uma boca não
chega para dizer. Está cosida a ponto cruz
com uma rendinha antiga que ficava bem
numa saia que não vou vestir. 
O perigo e o medo vaiam-me, apontam-me
o dedo do meio. Mas eu vou nesta velocíssima
direcção de Marte, velocíssima velocidade do adeus
sem olhar a meios.
Levo uma coroa de flores na cabeça para cheirar
o que perco e uma espada na mão para combater
o olho da Mãe. 
A esta velocidade perdem-se os sentidos, objectivo
final.
Não se ser físico custa muito, é maior que a agulha
que pica. Entro na estratoesfera e rebento com os
tímpanos – a mutação em zumbido.
Eu toda endeusada a deitar a língua de fora às
cascatas, não quero saber. Vou arder em Marte, mas
ficarei bem a saltar numa erupção espontânea
a espontaneidade aparece-me sempre no prato. 
Hoje não estarei cá e amanhã também não
Serei crocodilo solitário que engoliu um planeta,
ah, a grandeza dos bichos!
levo-os a todos comigo - sem mim
todos no nada, a caminho da grande marcha 
todos em triunfo,
depois da pele enxovalhada.

[CIMG1469.jpg]

Poesia de Cláudia R. Sampaio Nasceu a ferros num dia invernoso de 1981. Escreve para saber quem é, e talvez para conhecer mais, embora saiba que o conhecimento só vem com a morte. Escreve para não ofender, mas ofende toda a gente. Escreve para sonhar, para demolir, para rir, para evitar morrer num acidente. Apaixonou-se pela ironia e pediu-a em casamento, mas foi rejeitada. Por isso agora dorme sozinha e se quiser pode fazer xixi na cama. Vocês não.

a culpa é minha

os lábios tremelicantes de Wagner
a gata acomodada na minha almofada
e assim estamos, nesta quarta-feira em
que Lisboa pára para ver o Benfica.

estou isolada numa ilha de pó e livros abertos nas
mesmas páginas desde Domingo.
só eu é que não quero saber da liga Europeia
só eu é que não quero saber se os astros
se uniram para me isolar em cima da manta-zebra
com dois ou três buracos de nicotina

a gata que está à janela ri-se de mim
e pisca o olho à vizinha que vai com
o tuperware buscar o jantar à Alice
toda ela feita de benfiquismo, hoje quarta-feira
dia de sol, vento moderado de sudoeste
uns milhões de mortes aqui e ali, menos
nascimentos e menos fodas
hoje ela nem cozinha e aposto que tem uns
camarõezinhos no frigorífico, resultantes
da poupança reforma.

o sol já teve três erupções esta semana
mas penso que nada têm a ver com o jogo
nada tem a ver com o jogo, só os adeptos
é que não percebem. Nem eles têm nada a ver
com o jogo. Aliás, nós não temos a ver
com nada de nada de nada.
Nós não somos feitos para pertencermos a
alguma coisa. Nós não somos feitos da
matéria resultante de investigações científicas.
Nós somos feitos de uma explosão, de conjunções,
de equações complicadas, de amor desconhecido.
Nós somos zero infinito, zero ao quadrado, zero perdido
no universo trocista que vai parindo novos
planetas para nos distrair.

também eu já pari novos planetas
tenho-os escondidos no ventre
que ninguém vê, nem eu. Aliás, eu não
vejo nada de nada de nada.
Só às vezes.
Mas quando mergulho no mar deixo
sempre os olhos abertos e por vezes
vejo alforrecas cintilantes que me
 mostram a lingua, libidinosas

só a mim é que a libido vem em alforreca
e o prazer é um choco que me enche de
tinta quando espasma.

a gata à janela ri-se mais uma vez.
E eu não.
Só me rio de vez em  quando e nem sequer
tem piada. É a tal cara de
cuspir em tudo, a minha,
a tal que dizem que é snob.
Deixem-na ser.
A minha cara é que sabe, eu não mando NADA DE NADA.

A cara é à parte do corpo. A cara tem um manifesto
em que explica as expressões a usar em cada
ocasião.
Não liguem se me rir num funeral,  ou se vier a
chorar com o benfiquismo. A cara é que sabe.
A cara às vezes comunica com o resto do corpo
Por exemplo, hoje comunica com o meu pé que
está verde e roxo e chora pelas sapatilhas
de ballet. Nunca fui uma grande bailarina.
Nunca fui... nada de nada de nada.
Se fui, não me lembro. Talvez tenha sido mais
nas tardes em que me sentava à mesa da
cozinha com a minha avó, a comer pão
com marmelada e a mexer-lhe nos cabelos
brancos.
Agora sou apenas este corpo na
 manta zebra a teclar umas letras com
o cheiro a laranja que não me sai dos dedos.

Tu também não me sais dos dedos.
Agarras-te à laranja e formas um pomar
um pormar feito de ti, quem diria...
pensava que só servias para me
lembrares da pequenez das minhas
palavras.
Pequenas, pequenas, pequeninas...
Nunca poderão sair grandes depois
das monstruosidades que já nos
dissemos. Nós não somos feitos de
acções, somos cobardes, escondidos
atrás de frases, aparecemos ao pôr-do-sol.

Um pomar... TU.

deiletemo-nos então em volta dos vários
pomares de TUS que por aí existem

e eu que nem laranja sou. Só tenho dedos.
se fosse algo, era apenas um figo seco em
embalagem fora de prazo, a contemplar
o ventre cheio de planetas e a sonhar com
o dia de aterragem.
Mas os figos nãoi aterram, deixam-se estar
a ser figos, eternamente. Vivem a secar.

VIVAM OS FIGOS SECOS
VIVA EU SENTADA NA MANTA ZEBRA

e cheiro os dedos mais uma vez,
cinco pomares estrelados, édens feitos de
TUS, feitos de eus, feitos de nós, feitos de
zeros mais zeros, mais zeros, mais zeros
infinitos zeros que me arrancam as sílabas
que me arrancam as horas a que tinha de
fechar a janela por causa do benfiquismo, as
horas a que tinha de fechar os livros, vão continuar abertos,
sempre as mesmas páginas amareladas
com cheiro a vida ( a vida é nos livros)
cá fora há nada elevado ao extremo, apesar
de não sabermos, mas desconfiamos
a ânsia expande-se de boca em boca disfarçada
de rotina.
Cuspo em todos os que se
dizem felizes.
Cuspo em TODOS ao infinito, infinito,
Infinitamente elevado ao cubo
não tenho vergonha, a cara de hoje é snob.

VIVAM OS SNOBS!

Tu tus, tus, e já somos tambores
Rufemo-nos em melodias compassadas
Aí vem a claque
Aí vem o rebanho disfarçado de gente
Aí vem o mundo em todo o seu esplendor
clamoroso, ardente de sugar tus,
de nos mandar para o Espaço, de onde
viemos todos.
 Irei.

Agora
vou arrancar tecla a tecla e engoli-las
para um dia as poder parir em
forma de pomar.

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